GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR


CÉLULA TRONCO TUMORAL: NOVO CONCEITO EM CARCINOGÊNESE COLORRETAL

Câncer Stem Cells: A New Concept in Colorectal Carcinogenesis

1 Mauro de Souza Leite Pinho

1 Professor da Disciplina de Clínica Cirúrgica da UNIVILLE, Joinville, SC Cirurgião do Departamento de Cirurgia do Hospital Municipal São José, Joinville, SC- Brasil


PINHO MSL. Célula Tronco Tumoral: Novo Conceito em Carcinogênese Colorretal. Rev bras Coloproct, 2009;29(1): 120-124.

Resumo: Apesar dos grandes avanços obtidos pelos estudos utilizando técnicas de biologia molecular diversas controvérsias persistem a respeito do mecanismo de carcinogênese colorretal. Ao longo do último ano, entretanto, observamos na literatura o surgimento de um novo conceito referente à existência de um conjunto de células situadas nas bases das criptas intestinais, as quais apresentam características bastante distintas do restante das células epiteliais. Estas células, denominadas como células tronco intestinais, apresentam-se de forma indiferenciada e com um ciclo de vida com duração superior a um ano. Desta forma, justifica-se assim nestas células a possibilidade da ocorrência de um acúmulo de mutações, etapa considerada essencial para o desenvolvimento do processo neoplásico, e que seria improvável de ocorrer em um colonócito normal, cujo ciclo de vida dura em média cinco dias. Outra importante evidência da participação destas células tronco no mecanismo de carcinogênese foi demonstrada por estudos capazes de reproduzir a formação de tecidos neoplásicos com a mesma característica do tumor original, a partir do implante de um reduzido número destas células em modelos experimentais, o que não se obtém através do implante de um grande número de células tumorais normais. Sabendo-se que a presença de uma mutação do gene APC é uma etapa precoce no processo de carcinogênese colorretal, acredita-se que esta exerça este papel contribuindo para a ocorrência de uma superpopulação de células tronco intestinais, levando a um desequilíbrio proliferativo na mucosa intestinal.

Descritores: Câncer colorretal, células tronco intestinais, células tronco tumorais.

Embora o grande número de estudos utilizando técnicas de biologia molecular realizados ao longo dos últimos quinze anos tenham representado um grande avanço no conhecimento do processo de carcinogênese colorretal, diversos conceitos permanecem desafiando nossa compreensão a respeito desta importante doença.
   A partir do trabalho original de Fearon e cols 1, em 1990, tornou-se evidente que o surgimento de uma célula tumoral é resultante de um acúmulo de mutações em seu DNA capaz de alterá-la morfológica e funcionalmente, levando a um ganho proliferativo o qual irá subsequentemente levar ao surgimento de uma população de células com características semelhantes. Como evento inicial deste processo foi identificada a presença de uma mutação no gene codificador da proteína APC, assim denominada por ser a principal marca genotípica da polipose adenomatosa familiar. Posteriores estudos demonstraram que esta mutação apresenta-se também como evento inicial em cerca de 80% dos casos de câncer colorretal esporádico 2.
   Em condições normais, o ciclo de vida cumprido pelo colonócito dura em torno de cinco dias 3. Assim sendo, temos aqui a primeira controvérsia, pois torna-se difícil a compreensão de como uma célula de tão curta duração poderia sofrer um acúmulo de mutações capaz de alterar completamente seu comportamento biológico.
   Outro importante obstáculo à utilização clínica dos conceitos desenvolvidos pelos estudos de biologia molecular diz respeito à grande heterogeneidade do tecido tumoral, o qual, apesar de sua provável origem monoclonal, é formado por células com características moleculares e funções bastante distintas entre si. Embora estes achados possam sugerir um grande potencial proliferativo para qualquer célula tumoral, isto não é confirmado em estudos experimentais, devido à grande dificuldade na replicação de tumores em modelos animais a partir da inoculação de células extraídas de tecido tumoral humano.
   Ao longo do último ano, entretanto, observamos na literatura o surgimento de um novo conceito capaz de revolucionar nossa compreensão sobre os mecanismos da carcinogênese, possibilitando inclusive a elucidação de forma bastante lógica de algumas controvérsias existentes até o momento. Referimo-nos aqui à célula tronco tumoral (cancer stem cell) 3-5.

As células tronco intestinais
Como sabemos, o epitélio colônico é formado pela presença de um grande número de criptas, estimado em cerca de 14 000/cm2. Cada uma destas criptas é composta por aproximadamente 2000 células submetidas a um constante e rápido regime de renovação, indiferenciada na base da cripta e sofrendo um processo de gradual de diferenciação a medida em que ascendem até a luz intestinal, sendo posteriormente descamadas através de apoptose 3 (Figura 1).
Figura 1 - A atividade proliferativa da cripta normal.

   Sabe-se hoje que na base da cripta existe um nicho de células especiais, denominadas como células tronco intestinais, as quais, além de não ascender em direção à luz intestinal, apresentam um ciclo de vida bastante longo, podendo aparentemente atingir alguns anos de duração. Estas células, que representam cerca de 1% do total de células crípticas, são responsáveis por promover a constante renovação da população celular do epitélio intestinal. Acredita-se hoje que isto ocorra inicialmente através da formação de um tipo especial de células denominadas como progenitoras ou transitórias, as quais irão por seu turno gerar as linhagens diferenciadas de células maduras que são os enterócitos, as células enteroendócrinas e as células produtoras de muco 4 (Figura 2).
Figura 2 - Tipos de células na cripta intestinal.

   Estas células tronco intestinais apresentam um ciclo de divisão celular bastante mais lento do que as células normais da cripta intestinal, podendo aparentemente realizar divisões simétricas, quando dão origem a duas células tronco ou duas células não-tronco, ou assimétricas, originando a uma célula tronco e uma célula não-tronco. Acredita-se que o ritmo e o formato destas divisões seja responsável não apenas pelo equilíbrio populacional da cripta mas também pelo próprio número de criptas existentes, multiplicadas através de um processo descrito como
   fissurização. Neste processo observa-se a formação de um brotamento lateral da cripta observado com frequência durante a idade de crescimento do cólon, possibilitando sua expansão. Este mesmo evento pode ser observado no indivíduo adulto na formação de tecidos neoplásicos como adenomas ou adenocarcinomas, e exemplifica a grande importância da manutenção do equilíbrio entre as células tronco intestinais e as outras células do epitélio.

Mecanismos de controle da divisão celular na cripta intestinal
Dispomos hoje de níveis elevados de evidência para a compreensão de mecanismos moleculares capazes de explicar esta dinâmica celular na cripta intestinal. Para isto, é interessante relembrar que as células atuam de forma integrada ao tecido no qual estão inseridas mediante ações moleculares ocorridas em três níveis que são:
a. A membrana celular, estimulada pela ligação de mediadores a seus receptores;
b. O citoplasma, através do qual o sinal originário do estímulo à membrana é transmitido até o núcleo para ativação dos chamados fatores de transcrição;
c. O núcleo, onde ocorre a expressão de genes para a síntese de proteínas que irão determinar o comportamento biológico da célula 6 .
   Dentre os mecanismos moleculares responsáveis pelo controle da divisão celular destaca-se aquele descrito como via WNT, através do qual a presença de estímulos ao nível dos receptores da membrana celular irá ativar uma importante proteína, denominada beta-catenina a qual, presente no citoplasma, irá por seu turno ativar um fator de transcrição (TCF-4) cuja ação inclui, entre outras, a expressão da proteína survivina. Esta é uma potente inibidora do mecanismo de apoptose celular, levando assim a uma redução da morte celular, e consequentemente favorecendo ao acúmulo de células. É para cumprir esta função que observa-se um aumento da expressão de survivina nas células presentes na base da cripta, onde este maior ritmo de divisão celular é necessário.
   Entretanto, a medida em que as células ascendem na cripta, torna-se necessária a redução deste ritmo proliferativo, e para que isto ocorra existe a expressão da proteína APC acima citada, a qual é responsável pela inibição da ação da beta-catenina, favorecendo a ocorrência da apoptose ao nível da luz intestinal, com a consequente descamação das células e manutenção do equilíbrio epitelial 7.

As células tronco tumorais
As primeiras evidências de células tronco tumorais foram descritas nas leucemias em um estudo publicado por Bonnet e Dick 8, os quais demonstraram que um grupo específico de células tumorais foi capaz de replicar tumores in vitro com grande facilidade, enquanto o mesmo não era obtido com o restante das células leucêmicas. Estas células foram diferenciadas das outras por sua capacidade de expressar a molécula CD34 e não expressar a molécula CD38, sendo então denominadas como células tronco tumorais.
   Posteriormente, células tronco tumorais foram identificadas em tumores sólidos. Na mama, Al-Hajj e cols 9 demonstraram que o implante de cerca de 100 células CD44+ e CD24- foi capaz de formar tumores primários e secundários, enquanto o mesmo efeito não foi obtido com o implante de dezenas de milhares de células tumorais normais.
   Em um estudo similar realizado com tumores do sistema nervoso central, um pequeno conjunto de 100 células tumorais CD133+ reproduziram em ratos um tumor idêntico ao original, enquanto 100 000 células CD133- não puderam fazer o mesmo10.
   Desde então, células tronco tumorais têm sido descritas em diversos outros tumores, como o câncer de prostata 11, melanoma 12, pâncreas 13, fígado 14, cabeça e pescoço 15 e colorretais 3-5,16,17.

As células tronco na carcinogênese colorretal
Ricci-Vitiani e cols 16 publicaram em 2007 um estudo identificando possíveis células tronco tumorais no câncer colorretal, descritas como sendo aquelas capazes de expressar a proteína CD133 (também relatadas como células CD133+). Estas células, que representavam cerca de 2,5% do total de células tumorais, uma vez injetadas no subcutâneo de ratos imunodeficientes foram capazes de reproduzir tumores com as mesmas características do tumor original, o que não foi obtido com as células CD133- . Além disto, estas células demonstravam a capacidade de apresentar um crescimento exponencial por mais de um ano quando colocadas em esferas de cultura tumoral.
   No mesmo ano, O'Brien e cols 17 publicaram um relato com resultados semelhantes ao injetar sob a cápsula renal de ratos as células tumorais CD133+ e obterem tumores contendo células diferenciadas e com a mesma heterogeneidade do tumor original. Concluíram então que estas células tronco tumorais são diferentes das outras células contidas no tumor, e que ao contrário do previamente imaginado, a heterogeneidade tumoral não ocorre de forma aleatória a partir de qualquer célula tumoral (modelo estocástico), mas sim obedecendo a uma organizada hierarquia determinada pelas células tronco tumorais.
   Dalerba e cols 18 reproduziram estudos semelhantes, sugerindo, no entanto que a análise da expressão das proteínas EpCAM/CD44 e CD166 seja mais consistente para identificar as células tronco tumorais, do que a CD133 somente.
   Boman e cols 3 analisaram a carcinogênese colorretal à luz dos novos conceitos de existência de células tronco tumorais, e utilizaram um modelo matemático para demonstrar que a formação de um tumor não poderia ocorrer apenas em consequência de alterações envolvendo ritmo proliferativo, apoptose ou diferenciação celular. De acordo com sua hipótese, o principal fator determinante do processo de carcinogênese seria a ocorrência de uma superpopulação de células tronco derivada da ausência de ação inibidora da proteína APC.

Implicações sobre o tratamento do câncer colorretal
A introdução do conceito de células tronco tumorais representa um importante avanço para a compreensão dos mecanismos de carcinogênese, contribuindo possivelmente para elucidar alguns aspectos, como:
- Esclarecer a possibilidade de ocorrência do acúmulo de mutações, uma vez que ao contrário dos colonócitos normais, as células tronco podem permanecer em atividade durante um longo período de tempo;
- Como se reproduzem lentamente, as células tronco tumorais podem ser resistentes à quimioterapia convencional, a qual visa atingir as células de grande atividade proliferativa. Desta forma, a obtenção de uma importante redução da massa tumoral pode não estar necessariamente relacionada à cura, por representar a morte de colonócitos normais. Caso confirmada esta hipótese, nova estratégia de quimioterapia deve ser desenvolvida, e dirigida em especial às células tronco tumorais.
   Como exemplo disto, a partir da demonstração de que as células CD133+ expressam IL-4, Todaro e cols 5 obtiveram em ratos uma resposta potencializada da quimioterapia convencional para a redução do câncer colorretal através da associação com anticorpos anti-IL-4.
   Estudos adicionais a respeito das células tronco tumorais poderão trazer novos susbsídios para uma melhor compreensão dos mecanismos de carcinogênese, possibilitando o desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais efetivas.

ABSTRACT: Despite the great number of studies using molecular biology tools several questions remain about the mechanisms of colorectal carcinogenesis. A recent concept has emerged from the literature regarding the existence of a specific group of indiferentiated cells situated at the bottom of intestinal crypts with a long life cycle that may last more than one year, described as intestinal stem cells. This particular property may explain the expected occurrence of a sequence of mutations necessary to the development of a carcinoma, which cannot be observed in a normal colonocyte with a mean cycle life of five days. Another important evidence to this concept is the induction in rodents of a tumor with similar characteristics to the original human carcinoma by injection of a small number of these stem cells, which is not achieved by using large number of normal cancer cells. It is suggested that mutation of APC gene, present as an early step in most colorectal carcinomas, may contribute to a superpopulation of intestinal stem cells with consequent disturbance of proliferative epithelial balance.

Key words: Colorectal cancer; intestinal stem cells; cancer stem cells.

Referências
1. Fearon ER, Vogelstein B. A genetic model for colorectal tumorigenesis. Cell 1990; 61: 759-67.
2. Powell SM, Zilz N, Beazer-Barclay Y e cols. APC mutations occur early during colorectal tumorigenesis. Nature 1992;359:235-7.
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4. Ricci-Vitiani L, Pagliuca A, Palio E, Zeuner A, De Maria R. Colon cancer stem cells. Gut. 2008;57(4):538-48.
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6. Pinho M. Biologia molecular do câncer _ fundamentos para a prática médica. Livraria e Editora Revinter Ltda., Rio de Janeiro, 2005.
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18. Dalerba P, Dylla SJ, Park IK, et al. Phenotypic characterization of human colorectal cancer stem cells. Proc Natl Acad Sci USA 2007;104:10158_63.

Endereço para correspondência:
Mauro de Souza Leite Pinho
Rua Palmares 380
Atiradores, Joinville, SC
89203-230
E-mail: mauro.pinho@terra.com.br

Recebido em 17/11/2008
Aceito para publicação em 03/12/2008

Trabalho realizado no Laboratório de Biologia Molecular e Disciplina de Clínica Cirúrgica do Departamento de Medicina da UNIVILLE, Joinville, SC e Departamento de Cirurgia do Hospital Municipal São José, Joinville, SC.